Texto: Aldo Santos.
Acabei de reler o Livro de Nei Lopes, O racismo explicado aos meus filhos (publicação da agir editora ltda, 2007). Uma importante publicação que, de forma simples e profunda, revela em grande parte as polêmicas em torno desse tema, muito difundidas e pouco esclarecidas.
O livro é delicioso, pois a partir de conversas contínuas através dos personagens Paulinha e Pedrinho com seus pais, Paulão e Lia, discorrem historicamente sobre temas relacionados ao racismo, esclarecendo conceitos e a etimologia das palavras ao longo do percurso estudado.
A partir de uma olhada no sumário, o diálogo familiar vai tratar da superioridade Ariana, do racismo cientifico, do massacre aos povos indígenas, da escravidão a partir do berço da humanidade (África), do racismo nos Estados Unidos e seu impacto nos dias atuais, discutem o apartheid, a democracia racial, a criminalidade, as cotas e o racismo moderno.
Destaco o registro e as definições contidas no capítulo 8, página 101, onde afirma que “A escravidão existe desde a antiguidade. E todos os povos a conheceram. No Egito antigo, na Grécia, em Roma, em todos os lugares houve escravidão. Mas a diferença entre essa escravidão, existente na Antiguidade europeia e mesmo outrora na África, e aquela que aconteceu depois da chegada de Cristóvão Colombo à América é muito grande. Na antiguidade, o que havia era na verdade servidão. E na Idade moderna, depois das grandes navegações portuguesas, o que reinou, mesmo, foi o que se define como cativeiro”.
O autor define ainda, que: “Cativo é um indivíduo que foi capturado, perdeu sua liberdade e ficou retido. Servo é a pessoa sem liberdade própria, obrigada á prestação de serviços, tendo sua pessoa e bens dependentes de um senhor”.
A escravidão foi um rendoso comércio a partir dos “Grandes Descobrimentos” aproximando efetivamente a Europa, Ásia, África e América. A partir do processo das navegações, a Europa passa a dominar outros continentes. Desde 1470, os europeus, liderados pelos portugueses, com o conhecimento e domínio técnico das navegações ao chegarem à África desenvolveram intenso comércio de manufaturas, tecidos, bebidas, fumo, armas de fogo e outros produtos. “Em pagamento, recebiam ouro, marfim e principalmente, jovens trabalhadores escravos, cuja mão-de-obra passava a ser necessária para o trabalho de exploração econômica das terras que começavam a explorar nas Américas”.(página 104)
O autor acrescenta que “...graças ao cativeiro e à escravidão de africanos e seus descentes nas Américas, a Inglaterra e a França, dominando Portugal e Espanha e assumindo a liderança na Europa, tornaram–se as nações mais poderosas do mundo”. (página 105)
Com a leveza de um permanente diálogo familiar, Paulão define que racismo é uma “ilusão de superioridade” que é absolutamente injustificável sob qualquer aspecto, caracterizando que várias terminologias são verdadeiros carimbos que irão marcar as pessoas, individual ou coletivamente no decorrer da história.
Dentre todos os capítulos, a luta contra a servidão e a escravidão foi uma constante na história desses povos, porém, a luta do povo Haitiano me chamou a atenção pela importância histórica e pela capacidade de resistência dos escravizados. O capítulo 9 que trata do Haiti, racismo e independência nas Américas, entendo que foi um marco significativo da resistência dos negros organizados contra essa chaga histórica que foi e continua sendo a escravidão.
Assim, “Paulão inicia a conversa sobre a sangrenta Revolução Haitiana, movimento que, a partir de 1791, inspirado pela revolução Francesa, culminou com a tomada de poder pelos ex-escravos, constituindo-se no marco inicial da extinção da escravidão negra nas Américas”.(página 109)
A revolução francesa aconteceu em 1789, se constituindo grande marco nas lutas pelos direitos humanos, além de incentivar novos momentos históricos segregados até então, e de certa forma, aparentemente imutáveis. Até a revolução em 1791 o “Saint Domingue” passou a ser denominado de Haiti, uma referência a um nome indígena, e teremos então a primeira nação a partir da revolta concreta de escravizados. Com essa vitória, as grandes potências se organizam a aprofundam o ódio aos negros, uma vez que o exemplo do Haiti passou a ser seguido em várias partes do mundo. Na Jamaica em 1791, os negros enfrentaram o poder colonial, da mesma forma que nos Estados Unidos de 1805 a 1860, a revolta dos Malês em 1835 na Bahia e em Cuba se manifesta a insurreição em 1844. Fundamentalmente, foi a partir “...de sua independência, consolidada em 1804, é que surgem as teorias sobre a inferioridade dos negros, defendidas pelo “racismo cientifico” de Gabineau e sues seguidores”.(página 110)
”E aí o chamado Ocidente, que já detestava aqueles negros ousados que haviam derrotados Napoleão, comprou a imagem vendida por Hollywood e passou detestar ainda mais o Haiti”.( página 110)
Ao falar do preconceito ainda vivo nos dias atuais, os personagens vão buscar historicamente as raízes desse ódio ao afirmarem que: “a resistência à escravidão, através de fugas, aquilombamentos e mesmo assassinatos de senhores, consolidou o estereótipos do negro bandido, já existente no imaginário europeu. Presente na literatura e no cinema-assim como o ‘índio mau’ nos Estados Unidos-,esse ‘carimbo’ foi estampado na terra dos moradores dos núcleos mais pobres, mormente das favelas”.( página 161)
O autor vai debater sobre a importância das cotas e sua necessidade como “importante arma de combate ao racismo”.(página 169.)
Sobre o racismo moderno o livro discorre sobre os vários aspectos do racismo camuflado e mantém em aberto o aprofundamento dos estudos dessa importante temática e finaliza combatendo, veementemente, as formas ainda presentes de se reafirmar, de ver, ler, agir e justificar a escravidão.
“Finalmente, observemos que uma outra forma de racismo é aquela em que o racista se mostra simpático e cordial para com o grupo que discrimina, mas adota comportamento cordialmente discriminatório, através de humor, do uso de ditos populares e de brincadeiras carregadas de conotações raciais. Este é o caso, por exemplo, daqueles indivíduos “boa praça” que, “de brincadeirinhas”, e diante mesmo de amigos negros, diverte-se contando “piadas’ de crioulo” na mesa do bar”.(página 181)
Como podemos perceber outros relatos históricos certamente servirão de referências para o entendimento das lutas e resistências dos negros em várias partes do mundo e, em particular, no Brasil.
Na verdade, espero que leiam o livro pela profundidade que tem, pela facilidade dialógica e pela necessidade de enfrentarmos todos os problemas que fere o ser humano, de forma mais profundamente radical possível. O livro ainda traz uma vasta bibliografia, que somada a outras deve ser objeto de leituras e releituras permanentes, já que o racismo e a opressão de classe estão profundamente presentes no cotidiano das ruas, das academias, nos palacetes e na verbalização de uma cultura introjetada pelos dominantes de plantão.
Aldo Santos. Ex-vereador em sbcampo, militante sindical, popular e partidário e ativista do espaço cultural Luiza Mahin
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